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23 de fevereiro de 2020

90 anos da Taça Apea: poderia ser um brasileiro, mas não é

O troféu da Taça Apea, exposto no Memorial do Corinthians (Foto: Reprodução)

Neste domingo (23), o Corinthians comemora o aniversário de 90 anos de um título muito importante, tanto desportivamente quando em status. Desportivamente, pois com sua conquista ficamos conhecidos como o "campeão dos campeões", alcunha que até hoje carregamos em nosso hino. E em status, pois foi um troféu revelante a ponto de a imprensa, na época, se empolgar: a Gazeta, por exemplo, não viu qualquer problema de noticiar, alto e claro: "Corinthianos, campeões do Brasil"!

Abaixo, na mesma página de 24 de fevereiro de 1930, o jornal explica por que afirma isso:

"Campeão absoluto que era de São Paulo, o Corinthians torna-se, agora, e de modo eloquente - derrotando seu adversário em sua propria casa depois de o abater em S. Paulo - campeão brasileiro. Iso porque vencendo o campeão da capital do Paiz, e em duas provas seguidas, outro laureado, por certo, não ha por esses Brasis que possa enfrentar com vantagem o campeão da Paulicéa... Haja vista os 11 a 2 sobre o America*, tri-campeão de Minas.".

Recorte de "A Gazeta" de 24/2/1930 (Foto: Arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional)
Ficou confuso? Não lembra desse título? Tudo bem, vamos explicar que conquista é essa e por que, apesar da empolgação da imprensa na época, ele NÃO é um campeonato brasileiro de fato. O que, achou que a gente ia pedir fax? Aqui é Corinthians, não tem fax aqui não! Vem com a gente!

Taça Apea 1930

No final da década de 1920, o Corinthians já não era mais aquela equipe recém-fundada que era desprezada pelos grandes da elite paulistana. O clube já havia acumulado cinco títulos paulistas em 14 anos de história e, em 1928 e 1929, voltava a ser campeão, com uma máquina em campo: Tuffy, Grané, Apparicio, Del Debbio, Filó, Gamba, Rato, De Maria...

Corinthians que enfrentou o Vasco, no RJ (Foto: "O Jornal", de 25/2/1930)
Após vencer o estadual de 1929, a equipe foi desafiada a disputar a Taça Apea com o Vasco da Gama, campeão do Rio de Janeiro. Vale lembrar que, como diz a reportagem da Gazeta, o Rio era a capital do Brasil naquela época. Além disso, era conhecido que, juntos, os dois estados (Rio e São Paulo) eram aquele momento os mais fortes do país. Daí a relevância desse tira-teima.

O sistema de disputa era simples: uma melhor de três jogos, sendo que caso um dos times vencesse os dois primeiros, já seria o campeão. Os jogos foram organizados pela Associação Paulista de Esportes Atléticos, daí o nome da taça. E foram marcados para 16, 23 e 24 de fevereiro de 1930.

No jogo de ida, em São Paulo, o Corinthians recebeu o Vasco no Alfredo Schürig, com força máxima em campo. A partida foi movimentada e cheia de gols: Filó abriu o placar para os paulistas logo com 4 minutos de jogo, mas Russinho, de pênalti, empatou para os cariocas aos 15. Então Filó colocou o Timão à frente de novo no placar, e Del Debbio ampliou aos 29 minutos. No segundo tempo, mais um gol para cada lado: Gambinha fez 4x1 aos 10 minutos, e o Vasco diminuiu aos 22 com Baianinho. Final de jogo: Corinthians 4x2.

Apesar da vitória, o jogo teve seus prejuízos para o Corinthians: Grané e Apparicio, dois importantes jogadores do time, saíram de campo machucados. A violência dos vascaínos, inclusive, foi motivo de protesto dos corinthianos para o árbitro Osvaldo Kroolf de Carvalho.

O jogo do título

Recorte de jornal da véspera da partida decisiva da Taça Apea 1929 (Foto: Reprodução/Todo Poderoso Timão.com)
Uma semana seguinte, em outro domingo, o Corinthians voltava a campo para a segunda partida, em São Januário. O Vasco precisava vencer para forçar a disputa do terceiro jogo, e fez por onde: logo no começo do jogo, Russinho chega a marcar para o Vasco, mas o gol é anulado, pois o jogador levou a bola com a mão. Mesmo assim, apesar de o primeiro tempo ter lances de ambos os lados, os donos da casa foram melhores, obrigando Tuffy a fazer várias defesas e marcando o único gol da etapa, em chute cruzado de Paschoal.

Aos 15 minutos do segundo tempo, o cenário piorou: Rainha serve Paes na entrada da área, que finaliza com rapidez e vence Tuffy: é o segundo gol vascaíno, que parecia garantir o resultado.

Mesmo sofrendo dois gols, o goleiro Tuffy foi um destaque do Corinthians no jogo (Foto: "O Jornal", de 25/2/1930)
Mas, a partir dos 27 minutos, o Corinthians mostrou a força do então bicampeão paulista e reagiu: aos 27, De Maria recebe passe de Filó e diminui o placar. O jogo continua, com chances de lado a lado, e em outro avanço corinthiano, Peres consegue o empate, em chute forte! E apenas dois minutos depois, Gambinha finaliza "em lindo estylo", como afirma o jornal, e vira o placar para o Corinthians! O Vasco até tenta reagir novamente, mas de nada adiantou: vitória corinthiana por 3x2 e título da Taça Apea garantido!

O real valor do torneio

Por ter vencido o campeão do Rio de Janeiro, a conquista da Taça Apea de 1930 rendeu ao Corinthians o título honorífico de "Campeão dos Campeões". E é exatamente essa conquista que é citada no início do nosso hino. Por isso, ela tem uma importância vital na nossa história!

E como adiantamos no início do texto, boa parte da imprensa da época considerou esse título como uma conquista nacional, devido ao fato de ser o duelo entre os vencedores dos dois estaduais mais fortes do país. Mas, olhando em perspectiva, 71 anos depois, essa denominação faz sentido?

É difícil dizer. Estamos falando de um ano onde, por exemplo, a seleção do Uruguai era considerada a melhor do mundo, por ser bicampeã das Olimpíadas - a Copa do Mundo ainda era um projeto, para ser disputada no ano seguinte. Na Europa, os torneios internacionais engatinhavam: nada de Champions League. O mais perto disso que existia era a Mitropa Cup, disputada desde 1927 entre clubes da Europa Central e Leste Europeu.

Seleção uruguaia, bicampeã da "Copa do Mundo" da época: as Olimpíadas (Foto: Reprodução)
Por aqui, a situação também era muito diferente da atual. A seleção brasileira, por exemplo, recém completava seus 15 anos de vida, com apenas dois títulos de Copa América. A nível de clubes, o futebol estava minimamente organizado em quase todos o país: até 1927, já existia torneio estadual em 19 estados, sendo os mais antigos São Paulo (1902), Bahia (1905) e Rio de Janeiro (1906).

Mesmo com o Campeonato Baiano mais antigo que o Carioca, porém, é certo que a nível de integração interestadual não há como questionar que o Sudeste, especificamente a ponte RJ-SP, estava anos-luz à frente de qualquer outra região. Não que não tenha havido tentativas: em 1917/18, por exemplo, foi disputado o Triangular Maranhão-Piauí-Pará, vencido pelo Paysandu. Anos mais tarde, o América-PE conquistou o Troféu Nordeste, disputado com outras sete equipes de quatro estados (Alagoas, Bahia, Paraíba e Pernambuco). E em 1927, o América-RN venceu o Torneio Coronel Murad, sobre três equipes de estados diferentes (Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte). Porém, como se vê, não foram mais que torneios amistosos e esporádicos, e não uma tentativa de estabelecer um torneio contínuo que definisse um campeão regional de fato.

Ao se olhar para as disputas entre São Paulo e Rio de Janeiro, é nítida a diferença. Já em 1910, o Botafogo vencia a A. A. das Palmeiras para conquistar o Troféu Interestadual, o primeiro registro de um tira-teima entre campeões dos dois estados. No ano seguinte, é colocada em disputa a Taça Salutaris, entre esses mesmos times - mas com vitória paulista. E em 1912, o Troféu Interestadual volta a ser jogado, com vitória do Americano-SP sobre o mesmo Botafogo.

Em 1913, começa a disputa da Taça Apea, ou Taça dos Campeões Estaduais SP-RJ. No seu primeiro ano, Paulistano e America disputam o troféu, mas como só o primeiro jogo ocorreu, ninguém foi declarado campeão. Já em 1914 houve um: o São Bento, após derrotar o Flamengo. Após essa edição, o torneio foi interrompido, só retornando em 1926.

Mas houve outra competição nesse intervalo, idêntica: a Taça Ioduran, disputada entre 1917 e 1919. O Paulistano, potência da época, foi o representante de SP nos três anos. Em 1917 e 1919, se recusou a jogar, e os cariocas levaram a taça (America e Fluminense respectivamente). Já em 1918 a equipe aceitou jogar, e foi campeã vencendo o Fluminense por 3x2.

Em 1926, a Taça dos Campeões Estaduais volta a ser disputada, com o título do Palestra Itália sobre o São Cristóvão. Passa por outra pausa, e volta em 1929, com o título do Corinthians, e continua sendo disputada com boa regularidade. Mesmo com a criação do Torneio Rio-São Paulo, em 1933, continuou sendo a competição interestadual mais relevante em disputa até os anos 1950 (foram 10 edições disputadas entre 1934 e 1948, com um título do Corinthians em 1941). E mesmo após a volta do Rio-SP, em 1950, ainda houve anos em que a Taça foi jogada (nove vezes, entre 1953 e 1987).

Apesar de todo esse histórico e contexto, por se tratar de uma disputa de apenas dois estados, fica muito difícil compartilhar da opinião da Gazeta, de que aquele título em 1929 foi como um torneio nacional. Hoje, na literatura esportiva, essa opinião não é compartilhada por ninguém - e também não é por nós. Apenas um torneio, dos disputados nessa época, possui um status considerado "nacional" hoje em dia: a Copa dos Campeões Estaduais, organizada pela CBD e disputada em 1920 no Rio de Janeiro. Participaram dele o Paulistano, o Fluminense e o Brasil-RS, com vitória da equipe paulista.

Portanto, não, não temos um título brasileiro de 1929, e isso não é um problema. Se tem algo de que temos orgulho, é de não precisarmos revisitar nossa história com o objetivo de turbiná-la: ela nos basta, do jeito que é. Afinal, podemos nos chamar de "Campeão dos Campeões" é mais do que suficiente!

* Apesar de a Gazeta citar a equipe derrotada pelo Corinthians por 11x2 como sendo o América-MG, o clube correto na verdade é o Atlético-MG, vencido por esse placar em 12/10/1929, no Parque São Jorge

Escrito e revisado por Daniel Keppler

Siga o autor no Twitter: @daniel_keppler

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