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22 de fevereiro de 2020

Os incomodados que sumam do Parque São Jorge

Tiago Nunes em treino do Corinthians: remando contra uma maré? (Foto: Agência Corinthians)

No Brasil, vemos o futebol como uma paixão cultural, algo que está enraizado em nossa sociedade e que move diversos sentimentos por todos os cantos de nosso pais. E aqueles que jogam no campinho perto de sua residência, ou até mesmo na rua (algo raro de se ver atualmente), se inspiram em determinados jogadores para poderem jogar de maneira bem-sucedida. Não só por conta do sonho que é poder fazer o que se gosta, mas pela chance de poder viver disso e construir um patrimônio para a família e para o resto da vida.

Só que nos dias atuais, a palavra “profissional” é muitas vezes distorcida - ou mesmo esquecida - por muitos desses atletas que servem de inspiração a tantos. E eles fazem isso sem se dar conta do peso que essa distorção - ou mesmo esquecimento - representa, visto o papel que eles desempenham ao vestir uma camisa e representar um clube que, no futebol de alto nível, paga e muito bem para que esses atletas façam parte de seus elencos.

Essa situação só fica mais grave ao percebermos como o futebol, com o passar dos anos, se transformou em uma máquina de dinheiro tal que não só se desprendeu da realidade do brasileiro comum como hoje trabalha para construir sua própria bolha, da qual enxergamos talvez apenas 1%. E mesmo esse mínimo que enxergamos, é passado por mil filtros antes de chegar até o torcedor, de forma que às vezes é até difícil saber o que é real e o que não é no mundo da bola.

A cartilha do professor

Trazemos esse debate ao site dias depois de o jornalista Bruno Cassucci, setorista do Corinthians no Globo Esporte, publicar matéria afirmando que, apesar os atletas do Timão estarem de acordo com a filosofia de trabalho do técnico Tiago Nunes, alguns estariam incomodados com exigências ditas "exageradas" do gaúcho, como: o horário regrado de alimentação, a diminuição das visitas no CT Joaquim Grava e no vestiário em dias de jogo, não serem avisados com antecedência que estão relacionados para os jogos (esse aviso passou a ocorrer na véspera do jogo), os treinamentos na manhã do dia do jogo, e o último, mas não o menos importante: saírem da mesa apenas com a autorização do arqueiro Cássio, capitão fixo do time essa temporada.

A despeito de não sabermos quantos são os "reclamões", e em qual nível essas reclamações teriam sido feitas à diretoria, o teor da matéria gerou revolta generalizada na torcida alvinegra. Afinal, as regras, de um modo geral, parecem parte de um método diferente para o clube sim, inovador, mas que teria um efeito importante de apagar a má imagem deixada pelo elenco corinthiano em 2019, especialmente em relação à (falta de) entrega dos jogadores na maioria das partidas.

Não bastasse as regras terem seu sentido e não serem nada rígidas se comparadas, por exemplo, à rotina dos jogadores quando servem à seleção brasileira (tirando o incompreensível tratamento diferenciado dado a Neymar, mas enfim), as justificativas supostamente dadas pelos jogadores para se queixarem das novas regras só colocaram mais lenha nessa desnecessária fogueira. Falta de tempo para compromissos? Ter a família no ambiente de trabalho? Dormir até mais tarde? Todos querem essas coisas. Mas o salário recebido por um jogador de futebol, cujo valor o trabalhador brasileiro jamais sonhará em ter, deveria compensar tantos "sacrifícios".

O sentido das regras

Todas as regras da "cartilha" de Tiago Nunes tem seus porquês e lógica. Um horário regulado de alimentação é importantíssimo para ajudar o atleta a manter seu metabolismo em ordem, evitando que seu desempenho fique aquém do esperado para poder treinar em alto nível e não afetar o seu físico. Permanecer à mesa por alguns minutos antes de sair ajuda a melhorar o ambiente no elenco, construindo um momento de debate e interação entre os próprios jogadores - tudo em prol do entendimento entre eles. Ou será que isso só pode acontecer nos churrascos, como Carille fazia?

Delegar a Cássio essa "autoridade" de dar aval aos jogadores de sairem da mesa não é uma questão exagerada, ou autoritária. É uma questão de justiça com o grande nome desse elenco e de reforçar o senso de hierarquia, inclusive com os mais jovens do time. O nosso camisa 12 é um verdadeiro símbolo corinthiano, tanto dentro como fora de campo. Ele encarna nosso espírito vencedor e passou anos trabalhando para conquistar esse respeito dentro do clube, a ponto de hoje poder cobrar os jogadores quando eles não cumprem seu papel tático durante a partida.

Outro ponto que provocou estranhamento entre os atletas foi a diminuição drástica das visitas no CT e a proibição da presença familiar em dias de jogos. No entanto, trata-se de uma questão fácil de entender, visto que a comissão técnica exige que os atletas estejam focados para o desafio, independente qual seja o clube a enfrentar. A ideia é evitar que qualquer pessoa que não vá participar do jogo possa, de qualquer forma, interferir na concentração do elenco para a partida. Injusto?

Já o fato dos jogadores serem alertados se foram relacionados um dia antes do confronto está ligado ao fato de que, cada vez mais, a comissão técnica tem recursos à disposição para avaliar o desempenho dos atletas em todos os detalhes, a ponto de saber exatamente quem tem mais condições na véspera do jogo! Afinal, o jogador foi contratado para estar à disposição, certo? E sempre, não apenas um dia ou dois da semana. É ele quem se ajusta à agenda do clube, e não o oposto. Reclamar desse ponto não é apenas individualista, como extremamente egoísta.

Quebra de cultura

O Corinthians de 2020 é um projeto totalmente novo, já que não só a comissão técnica, mas os jogadores, passaram a ser contratados com um propósito: mudar uma filosofia que se iniciou há mais de 10 anos, lá com Mano Menezes. E uma coisa é fato: mudá-la não vai ser fácil. Sabem por que?

Por que trata-se de dois trabalhos em um: ensinar a nova filosofia aos que chegam, e convencer os que já estavam no clube que agora essa nova filosofia é a certa. Será que todos estão dispostos a essa mudança? Será que, dos que dizem estar dispostos, todos estão verdadeiramente a fim de mudar? Até que ponto esse processo de renovação pode estar sendo sabotado, consciente ou inconscientemente?

Ralf deu uma declaração, na sua entrevista recente ao Globo Esporte, que acendeu um alerta. Ao comentar o trabalho de Tiago Nunes, afirmou sem papas na língua: "o Corinthians não é assim". Veja, será que outros não pensam assim, lá dentro do clube? E se existem, até que ponto essas pessoas estão comprometidas em fazer o novo treinador dar certo?

Fazemos essa reflexão após o Corinthians perder para o Água Santa, com um desempenho pífio em todos os setores e um futebol cuja qualidade beirou os piores momentos de 2019. Foi o primeiro jogo após a matéria do Bruno Casucci. Devemos nos preocupar com essa conexão, ou é apenas uma coincidência?

O corinthiano verdadeiramente apaixonado pelo clube quer ver o Timão vencedor. Aquele que, além de torcedor, é funcionário do clube deveria pensar da mesma forma, e com o dobro de esforço. Começamos a desconfiar que talvez não seja essa a realidade, e isso só pode ser lamentado, pois bastaria aos insatisfeitos buscarem opções no mercado e serem felizes em outro lugar, evitando que haja qualquer tipo de conflito interno no clube.

Hoje, o Corinthians precisa, muito, de paz interna, mas acima de tudo precisa de compromisso ao projeto e força de vontade, para fazer dar certo. É urgente que todos, que estão lá dentro, percebam de vez o quanto são privilegiados de viverem o que nós, aqui fora, apenas podemos amar: o Corinthians. Dar 200% por essa experiência não é apenas um compromisso salarial: é obrigação. Afinal, queremos um clube que honre eternamente o legado descrito em seu hino: "campeão dos campeões". E ninguém pode ser obstáculo para isso.

Os incomodados que sumam do Parque São Jorge.

Escrito por Enzo Ferreira, revisado por Daniel Keppler

Siga o autor no Twitter: @EnzoFerreira23

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