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2 de março de 2020

A cultura do rugby e os desafios do Corinthians na modalidade

O Corinthians Rugby se prepara para a disputa da SLAR, a partir de 14 de março (Foto: Reprodução/Peñarol Rugby)

A volta do Corinthians para o rugby após três anos do fim de seu time amador vem causando polêmica na comunidade do esporte. Afinal, trata-se de um projeto que, de certa forma, é único no Brasil: uma franquia profissional, criada por meio de uma parceria do clube com a Confederação Brasileira de Rugby (CBRu), onde um entra basicamente com a marca (e tudo o que ela carrega) e outro entra com estrutura, comissão técnica e jogadores. No fim das contas, é como se os Tupis (a seleção brasileira da modalidade) fossem disputar o torneio, mas com o nome do Corinthians.

A CBRu não foi a única que adotou um clube de futebol para sediar sua franquia na Superliga Americana de Rugby. No Paraguai, temos o Olimpia nas mesmas condições; e até mesmo no Uruguai, a segunda potência do rugby no continente, o Peñarol foi escolhido para disputar a SLAR (e podemos ter também o Nacional em 2021). Mesmo assim, a escolha do Timão não deixou de dividir os rugbiers, de uma certa forma, por diversos motivos. E o mais profundo deles, talvez, seja o temor de que a cultura do rugby - e seus valores - seja "contaminada" pela cultura do futebol, profundamente diferente.

Para o torcedor corinthiano isso pode soar estranho. Mesmo para um torcedor de futebol rival, talvez seja assim. Mas o rugby é um esporte completamente diferenciado nos seus princípios, sendo conservador nas suas tradições e orgulhoso disso. Mas então, como fazer o Corinthians (e o corinthiano), que foi forjado no futebol, se adaptar a esse esporte? E afinal, o que é essa "cultura do rugby"? Quais são seus valores?

Uma filosofia centenária

Apesar de, hoje, a cultura do rugby poder soar estranha a quem não acompanha o esporte, ela não é nada diferente do que o próprio futebol propagou, um dia. Afinal, ambos os esportes tiveram uma origem comum: o football, que não é o atual futebol, mas um esporte jogado de diferentes formas, com diferentes regras, pelas escolas e universidades britânicas no século XIX. Apenas em 1871 é que foi fundado o Rugby Football Union, que até hoje controla o esporte na Inglaterra.

Ou seja: o rugby, assim como o futebol, era originalmente um esporte disputado por cavalheiros, e onde reinavam princípios de boa convivência, companheirismo, e de boa fé na disputa (algo que hoje chamamos de "fair play"). Durante muito tempo, essa cultura permaneceu arraigada no futebol, das mais diversas maneiras: desde a resistência ao profissionalismo por parte de clubes extremamente tradicionais, como o Corinthian Club (que inspirou a fundação do nosso Timão) até movimentos como um boicote à regra do pênalti, pois alguns atletas julgavam que era uma vantagem indevida e desleal com o adversário! Mas com o tempo, o profissionalismo do futebol acabou tomando conta, e hoje os clubes amadores vivem à margem do público, do dinheiro e da audiência.

Mas não foi assim com o rugby. Muito embora tenha havido uma cisão em 1895, com a formação da Northern Rugby Football Union, entidade criadora do "rugby league" e favorável à profissionalização, pouco mudou em relação à filosofia que regeria o esporte, independente se "rugby league" ou "rugby union". Pode-se dizer, em resumo, que o esporte carrega consigo cinco valores fundamentais: integridade, respeito, solidariedade, paixão e disciplina.

E não, não se trata apenas de palavras em uma lista. A comunidade leva isso a sério e a pratica em todos os momentos, não apenas os atletas, mas também a torcida. Por isso, é quase impossível se encontrar hooligans entre os rugbiers: eles não encontram apoio. E durante os jogos, o respeito é lei, entre os atletas, e deles com a arbitragem. Quebrar esse princípio é um ato que gera punições severas.

Mas nada simboliza mais a preservação da cultura do rugby do que o "terceiro tempo". Trata-se de uma confraternização, compartilhada pelos dois times que disputaram um jogo, onde os atletas conversam sobre a partida e relaxam, em total camaradagem. É um momento onde as rivalidades são colocadas de lado, pelo amor ao rugby. Apesar de não ser algo oficial, dentro da regra, é uma tradição centenária, que segue existindo, inquestionável!

O dilema do profissionalismo e a SLAR como novidade

Em 1995, o rugby se tornou um esporte "aberto", ou seja, sem restrições quando à possibilidade de os clubes serem profissionais, por decisão da International Rugby Football Board (a FIFA do esporte). Esse era (e continua sendo) tema de grande debate entre os rugbiers, pois uma grande parte da comunidade entende que o esporte deve ser jogado por amor, e não por dinheiro. O outro lado, porém, afirma que a profissionalização abre portas para que o esporte seja mais popularizado, pois ao ser amador, ficaria restrito àqueles que podem bancá-lo, o que o tornaria "de elite".

Na América do Sul, o rugby amador ainda dá as cartas. A Argentina, por exemplo, é conhecida mundialmente por ser uma defensora do amadorismo no esporte. Já outras entidades limitam a quantidade de times e competições profissionais.

A SLAR, porém, abre um novo capítulo nesse debate. A competição sul-americana, que pretende ser como uma Copa Libertadores do rugby e terá seu campeão disputando uma "Supercopa das Américas" com o vencedor da Major League Rugby (torneio disputado por times dos EUA e Canadá), é profissional e usa esse fato como qualidade para se promover. Em um país como o Brasil, onde o rugby é amador, assim como seus times e suas competições, isso acabou sendo não apenas uma novidade, mas de certa forma uma ruptura: passaríamos a ter um time profissional, e apenas um. Seria natural, portanto, que esse time fosse criado de forma a unir a comunidade em torno de um projeto nacional, certo?

Os riscos da união Corinthians - Rugby

Mas não foi bem isso que ocorreu. Em busca de investidores, audiência e apoio popular, a CBRu (assim como outras confederações) resolveram apostar em um vínculo com os clubes de futebol, o esporte mais jogado no continente. Faz sentido? Até faz, ao se pensar comercialmente. Mas há riscos? Há, e são alguns. E para nós, corinthianos, é fácil entender, basta olhar a situação como um todo.

O Corinthians possui, hoje, cerca de 25 milhões de torcedores em todo o Brasil. Um público que, se engajado massivamente, certamente agregaria ao rugby. No entanto, há poréns. Em primeiro lugar, estamos falando de um esporte com pouquíssimo apelo popular, que começa a crescer apenas agora, aos poucos.

E em segundo lugar, mas não menos importante: estamos falando de um clube que carrega, consigo, outra torcida: a dos anticorinthianos. Como fazê-los entender que, na SLAR, o Corinthians é o Brasil, para que o amor ao esporte passe por cima da rivalidade futebolística? Não seria demais pedir a um rugbier palmeirense que torcesse para o Timão na SLAR "pelo bem do rugby"?

Além disso, existe a preocupação de que vincular um time profissional de rugby ao Corinthians faça com que os valores e a cultura do futebol, muito ligada ao Timão, acabe "deturpando" a filosofia tão preservada pelos rugbiers. A noção de cavalheirismo entre rivais, de disputa sempre limpa, de respeito entre atletas e torcedores, não é 100% compartilhada e nem seguida no futebol. São comuns as cenas de brigas, discussões e até coisas piores ocorrendo em partidas do esporte. Haveria riscos de o Timão, e seus torcedores, trazerem esse "lado ruim" do futebol para o rugby?

Os desafios do Corinthians Rugby

Por isso, acredito que o grande desafio da franquia que leva o nome do nosso Corinthians é aliar a paixão que todos nós carregamos pelo clube com a eterna fidelidade aos valores que norteiam a cultura do rugby. Quais são eles? Segundo Sebastián Perasso, um conhecido autor de obras sobre rugby, são "o valor do respeito em primeiro lugar, mas também da disciplina, honestidade, o espírito de sacrifício e a solidariedade. Em um esporte de contato como é o rugby, o jogo não pode estar isento de boa-fé, autocontrole, respeito e altas doses de cavalheirismo. Caso contrário, este esporte simplesmente desaparece".

Talvez fosse importante que, enquanto representantes do Corinthians Rugby, os atletas auxiliassem e fossem embaixadores dessa cultura, em ações que envolvessem a comunidade que vive o Corinthians, seja no Parque São Jorge, seja em outras regiões - como Itaquera, por exemplo. Sabemos que cada país tenta difundir suas potencialidades de uma forma, incluindo os esportes. No Brasil, optou-se por trabalhar o rugby dos clubes para as escolas, buscando adeptos na juventude. Por que não realizar ações junto com as escolinhas de futebol do Corinthians, por exemplo? Se nem todas as crianças têm aptidão para o futebol, algumas podem ter para o rugby...

Um esforço particular do Corinthians em fazer o projeto dar certo junto à torcida também seria outro fator importante. O anúncio do clube foi discreto e atrasado. Pouco se repercutiu além da comunidade. E quase ninguém sabe que essa não é a primeira experiência do clube com o esporte. Seria uma oportunidade de ouro para o Corinthians colocar sua estrutura verdadeiramente à disposição da modalidade, especialmente em um cenário nacional onde o esporte tem pouco apoio e organização - são apenas seis federações a nível estadual, por exemplo. Isso, talvez, ajudaria o clube a ter uma imagem melhor entre os rugbiers, e poderia servir como um "quebra-gelo" para a antipatia que os não-corinthianos possam ter de antemão à franquia!

E claro, a torcida corinthiana precisa se adaptar. Não vai ser benéfico ao esporte nem ao projeto tratar as partidas como se fossem guerra, xingar torcedores dos outros times, ou seus atletas, a arbitragem. Os jogos do Corinthians no Brasil deveriam, sim, ter instrumentos, bandeiras e tudo o mais que as organizadas usam para fazer sua festa. Mas existe uma cultura à qual o torcedor precisa se adaptar. Isso também traria ao projeto um respeito a mais, que hoje ele não tem, com muitos.

Enfim. Sabemos que não basta dizermos que o rugbier deve torcer para o Corinthians na SLAR e pronto. Sabemos que é difícil separar. Mas cabe a nós ponderar os prós e contras dessa nova parceria que se inicia e lembrar: se o time por detrás da camisa corinthiana é a seleção, quem ganhar ou perder os jogos na SLAR não será só o Corinthians, mas também os Tupis. Dentro da filosofia do rugby e considerando todos os seus valores, não é válido dar uma oportunidade a esse projeto, independente do que ele nos lembrar futebolisticamente?

Não há espaços para se isentar. O sucesso do Corinthians na SLAR pode ser, até, uma abertura de portas para um melhor cenário do rugby em 2021, 2022, e por aí vai. Cabe a nós, portanto (e isso é uma opinião apenas) torcer para que o Timão respeite a cultura do rugby enquanto estiver envolvido com o esporte, e querer seu sucesso. E nem precisa dizer "vai Corinthians", viu?

Escrito e revisado por Daniel Keppler, com a colaboração de Gonzalo Sfeir

Siga os autores no Twitter: @daniel_keppler Gonzalo Sfeir


2 comentários:

  1. Texto fantástico! Se presarmos pelo primeiro pilar do rugby, o respeito, essa situacao agregará muito para nosso querido esporte! E o rugby vai crescer!

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