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3 de fevereiro de 2020

Expulsão de Janderson: um crime com vários culpados

Janderson comemora seu gol com os torcedores corinthianos (Foto: Beto Miller/Am Press & Images/Estadão Conteúdo)

Neste domingo (2), Corinthians e Santos se enfrentaram pelo Campeonato Paulista. Em jogo pela manhã, com mais de 40 mil torcedores na Arena, o Timão venceu por 2x0, com gols de Everaldo e Janderson e ótima exibição.

Mas infelizmente o que poderia ter sido uma festa do futebol acabou manchada. Não pelo Corinthians, ou pelo Santos, mas pela arbitragem - mais precisamente o árbitro.

O gol do garoto da base corinthiana foi marcado de muita polêmica: por ter comemorado o seu gol com a Fiel, o camisa 31 recebeu o cartão amarelo. Como era seu segundo cartão na partida, foi expulso.

Muitos torcedores e jornalistas ficaram revoltados com isso, considerando a punição como o que ela é: um crime, um verdadeiro atentado ao futebol. No entanto, no mesmo ritmo em que a revolta crescia, os comentaristas de arbitragem, muitos deles árbitros aposentados, correram para contemporizar e defender Luis Flávio de Oliveira, alegando que o cartão "estava na regra" e por isso não se devia criticar o árbitro, e sim a regra. O próprio Janderson aderiu a essa narrativa e, hoje, se culpa por ter (segundo ele) se esquecido do amarelo que já tinha, antes de ir celebrar seu gol com Fiel.

Mas, ao analisar a letra fria da lei do futebol, o que se vê é que algo bem diferente do que os ex-árbitros tentam defender nos seus surtos de corporativismo. A verdade é que, cada vez mais, as "regras" vem sendo interpretadas de modo frio e cruel, com o objetivo de tirar a alegria do jogo de futebol e literalmente acabar com a conexão entre jogadores e torcida. Estão querendo que o jogo se transforme em um teatro, que o gramado vire um palco e que a torcida vire plateia, de preferência daquelas bem comportadas e silenciosas. Tudo o que vai contra a essência do futebol, o esporte mais popular do planeta!

A lei e a mentira

A principal justificativa (furada) dada para o cartão amarelo a Janderson é que sua comemoração teria representado um risco à sua integridade física e à segurança da torcida, e que isso estaria amparado pelas regras. Mas, será que está mesmo?

Quem faz as regras máximas do futebol é a International Football Association Board (IFAB), órgão criado em 1883 pelas federações da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda e que regulava o futebol no Reino Unido. Após a criação da FIFA, ela adotou as regras da IFAB como suas e foi admitida na entidade. E por incrível que pareça, até hoje, ela permanece com a mesma composição, o que significa que as regras do futebol, em pleno 2020, são decididas por membros de quatro federações europeias e de uns cartolas da FIFA. Eurocentrismo na sua forma máxima.

Enfim, na sua Lei 12, a IFAB aborda a questão da comemoração dos gols, e o texto diz o seguinte:

"Os jogadores podem comemorar quando um gol é marcado, mas a comemoração não deve ser excessiva; celebrações coreografadas não são incentivadas e não devem causar perda de tempo excessiva.
Sair do campo de jogo para comemorar um gol não é uma ofensa passível de advertência, mas os jogadores devem retornar o mais rápido possível.
Um jogador deve ser advertido, mesmo que o gol não seja validado, por:
  • Subir em uma cerca do perímetro e / ou se aproximar dos espectadores de uma maneira que cause problemas de segurança
  • Gesticulando ou agindo de maneira provocativa, debochada ou inflamatória
  • Cobrindo a cabeça ou o rosto com uma máscara ou outro item similar
  • Remover a camisa ou cobrir a cabeça com a camisa"

Essas regras foram aprovadas em junho de 2017. Diante delas, a CBF publicou o caderno Regras de Futebol 2017/18, onde faz as mesmas recomendações aos árbitros brasileiros.

O que fica claro, portanto é que não se trata de lei absoluta e sentido restrito. Trata-se, sim, de regra flexível e dependente de INTERPRETAÇÃO para que seja cumprida. Afinal, o que é "risco de segurança", ou "agir de maneira provocativa"? Depende. Cada um verá de uma forma, de acordo com seu bom sendo. E esse é o grande problema da arbitragem brasileira: ela parece totalmente desprovida de bom senso.

A prova disso foi a Copa do Mundo, na Rússia. Mesmo com as recomendações da Lei 12 da IFAB, não faltaram exemplos de gols onde os jogadores saíram do campo, se dirigiram à torcida, fizeram suas coreografias, sem qualquer problema. Afinal, isso tudo faz parte do espetáculo...

Mas no Brasil, a cada ano que passa, fica claro que a "recomendação" tem virado "lei" dentro da sua pior interpretação. A expulsão de Janderson, nesse domingo, só foi mais uma demonstração podre de como nosso futebol morre a cada rodada. Afinal, sua saída de campo não é proibida pela Lei 12. E sua comemoração com os corinthianos não desencadeou QUALQUER RISCO de segurança, nem a ele, nem aos torcedores,  nem ao jogo. E esse risco PRECISA EXISTIR para que o cartão seja dado, conforme o que diz a regra. Logo, é MENTIRA que a punição está amparada legalmente. Não há como fugir disso.

O nome da vergonha

Coronel Marinho
Coronel Marinho: de PM repressor de organizada a chefe da arbitragem nacional (Foto: Divulgação)
O pior lado dessa história, talvez, é que sabemos muito bem quando começou esse processo de "castração" do lado popular do futebol brasileiro, pois ele tem pai: Coronel Marinho. Aquele, que por quase duas décadas usou da bandeira da "segurança nos estádios" para, à frente do 2º Batalhão de Choque da PM-SP, reprimir torcidas de todos os times paulistas, inclusive as organizadas - a quem ele chamava de "malditos", despudoradamente.

Em virtude do seu "belo" trabalho, aproximou-se da cartolagem, até virar um deles, em 2005. Mas não para cuidar de algum assunto da sua área, e sim para presidir a Comissão de Arbitragem da Permaneceu lá por 11 anos, tempo suficiente para aprender com perfeição a usar as brechas interpretativas das regras do futebol para preservar sua vocação de coibir e reprimir - mas dessa vez os jogadores. E em setembro de 2016, todo o Brasil passou a ser vítima de seu know-how, pois seu padrinho Marco Polo del Nero o puxou para a Comissão de Arbitragem da CBF, onde esteve até abril do anos passado, quando foi substituído por Leonardo Gaciba.

No entanto, após três anos tendo a arbitragem comandada por alguém que entendia mais de cassetetes do que apito, nem mesmo sua saída provocou qualquer mudança. 

Outros casos

Vinicius Jr (Foto: Marcelo Theobald/Agência O Globo)
Não é difícil encontrar casos onde jogadores foram punidos com cartão de forma questionável, após comemorarem seus gols. Em 10 de fevereiro de 2018, por exemplo, Vinicius Júnior marcou pelo Flamengo, contra o Botafogo, e comemorou fazendo um sinal de choro: amarelo.

Já em 19 de junho do mesmo ano, Lucas Lima, do Palmeiras, marcou contra o Santos, seu ex-clube. Em um jogo de torcida única do Santos, o camisa 20 comemorou mostrando o nome o número da camisa. O árbitro Dewson Freitas aplicou o cartão, pois ele teria comemorado "com a torcida".

Moisés (Foto: Gazeta Press)
Também em 2018, Moisés, do Palmeiras comemorou um gol contra o Atlético-MG usando o tripé de um fotógrafo para simular um cajado, fazendo um trocadilho com seu homônimo bíblico: amarelo. No mesmo jogo, Luan, do Galo, também marcou e foi advertido. A justificativa em ambos os casos: "perder um tempo excessivo na comemoração de um gol".

O caso mais recente, antes de Janderson, aconteceu na final da Copinha desse ano. Após o Grêmio marcar no Grenal, o zagueiro Calegari subiu no alambrado do Pacaembu para celebrar. Resultado: amarelo e vermelho, pois já tinha cartão.
Neymar (Foto: JPNews)

Por incrível que pareça o único caso de cartão amarelo após comemoração de gol que encontramos e que se encaixa 100% na regra foi anterior a 2017: seis anos antes, em 2011, Neymar marcou contra o Colo Colo, pelo Santos, em partida da Libertadores. Na comemoração utilizou uma máscara com o seu rosto, dada pelos torcedores antes da partida começar. Por conta da celebração o árbitro da partida advertiu o atacante com cartão amarelo e, logo em seguida, o vermelho, pois já tinha sido amarelado antes.

Um crime com vários autores

 Não há explicação para o cartão amarelo em Janderson. O gol é o momento máximo do futebol, é o momento que todos no estádio esperam ver. O que explica alguém pensar que a celebração desse momento possa ferir a segurança de quem quer que seja?

Quem pode ser capaz de, ao ver a comemoração do garoto com os corinthianos naquela escadinha, sentir qualquer tipo de risco? Por acaso ver um jogador de perto seria tão traumático assim aos torcedores, tamanha a dor que o encontro causaria? Será que o abraço de Janderson é tóxico? Ou será que todos aqueles abraços e carinho da torcida, em êxtase pelo gol marcado, seriam capazes de matá-lo, acabando com o jogo?

Quem não se lembra dessa comemoração de Paulinho (Foto: Marcos Ribolli/GE)

Que corinthiano não tem guardado na memória o primeiro gol de Ronaldo, no primeiro Derby de 2009? E como esquecer a comemoração de Paulinho após seu gol contra o Vasco, pela Libertadores de 2012, cuja foto do abraço no torcedor no alambrado do Pacaembu correu o mundo pela Internet e nas capas de jornais? Foram momentos que viram memórias e se transformam em parte do nosso legado enquanto clube de massa - e que não foram punidos pela arbitragem!

Esse processo de afastamento do torcedor do futebol não é recente, mas piora a cada ano. Primeiro vieram os jogos com 25% de torcida visitante, depois 10%, até chegarmos à torcida única, sem falar na proibição de bandeiras, instrumentos, camisas, faixas e tudo mais que permitia ao torcedores fazer a sua festa durante os jogos. Então passamos a sofrer com a elitização dos clubes, com participação decisiva de suas diretorias, em movimentos como o encarecimentos dos ingressos, produtos oficiais a preços exorbitantes e o afastamento dos pobres das arenas de última geração.

Agora, chegou a vez dos árbitros, que orientados por uma obsessão insana de pessoas como Coronel Marinho de acabarem com a conexão entre povo e futebol, querem transformar os jogadores em animais engaiolados, destinados a jogarem futebol e só. Comemorar gol? É excesso. Popular demais. Pra que?

Isso poderia mudar facilmente. Bastaria que aquele tal bom senso surgisse e a Lei 12 passasse a ser cumprida como deve. Mas talvez nunca vejamos isso acontecer. O futebol como já conhecemos no passado parece destinado a morrer, e o fato de nem mesmo seu momento de êxtase - o gol - ser poupado é só o sinal mais claro disso. Que descanse em paz.

Escrito por Arthur Kartalian, Daniel Keppler, Victor Consoli e Winicius Faria, revisado por Daniel Keppler

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